[Publicado do "Diário do Minho" de 2004.04.19]

 

Braguisande - A memória do desastre
Associação Cívica Arco-Íris

A virtude dos mapas é essa: exibem a irredutível disponibilidade do espaço, previnem que tudo
pode acontecer nele. E acontece.

José Saramago. A Jangada de Pedra.

 

A história está por contar, mas ainda estão vivos, felizmente, os últimos bracarenses que sobreviveram ao trágico cataclismo que assolou as terras de Entre Douro e Minho no dealbar do século XXI e transformou Braga numa ilha - hoje denominada, Braguisande. Graças ao seu testemunho, é possível reconstituir finalmente como tudo se passou. Para os anais da eternidade, eis como das cinzas da Braga bimilenar (que era o máximo) se formou a Braguisande (minimal) que hoje conhecemos.

No dealbar do século XXI, Braga tinha esgotado a sua capacidade de crescimento à superfície e começara a projectar-se no espaço aéreo, apenas doze pisos abaixo da rota dos satélites. Foi após a aprovação do 4° Plano Director a 100 metros de Altitude e o início da construção da terceira circular de teleféricos que tudo aconteceu, no tempo breve de um pesadelo...
Quando os primeiros estrondos foram ouvidos ainda houve, em Braga, quem tivesse pensado que desabara a recém inaugurada torre de observação urbanística do monte de S. Gregório - o mais alto edifício do concelho, com os últimos dezasseis pisos a elevarem-se acima da cota média das nuvens. Outros, com o ouvido mais afeiçoado às derrocadas (todos os dias desabava então no perímetro do concelho um edifício qualquer), imaginaram logo que se estatelara à superfície o 3° Monumento ao Betão da Secil, erguido em condições precárias entre o 7°e 8° teleférico suburbano, a 50 metros de altitude.

Infelizmente, o tempo da ilusão não durou muito. Os estrondos sucediam-se a um ritmo vertiginoso, o chão começou a tremer e com ele tudo o resto, a água e a lama substituíam o alcatrão e o empedrado das ruas e avenidas.
Rapidamente, os bracarenses tomaram consciência da incontornável realidade - o progresso resolvera finalmente cobrar à cidade e ao concelho as dívidas acumuladas pelo crescimento selvagem das últimas décadas.

De acordo com os relatórios dos sismógrafos, mais tarde confirmados pelos repórteres do semanário Minho, foram sete, como as pragas do Egipto, os fenómenos naturais que, de uma forma conjugada, abalaram para sempre os alicerces da estabilidade municipal - vários tremores de terra, dois dilúvios, uma sindicância, quatro processos crime, três furacões, um maremoto e duas erupções vulcânicas.
Está hoje comprovado que o primeiro sismo teve o seu epicentro localizado na chamada Colina da Cividade. Logo de imediato, o Monte Picoto transformou-se num vulcão activo, começando a escorrer pelas suas vertentes ondas de lava incandescente, que num ápice cobriram de cinzas o Estádio 1° de Maio e as vivendas exóticas sobranceiras à Aldeia dos Macacos. 

A partir daqui, foi uma verdadeira sucessão de catástrofes. A plataforma da Avenida da Liberdade abateu em relação à Rodovia; a Arcada e o Arco da Porta Nova ruíram com forte estrondo; na rua do Souto abriu-se uma enorme fenda pela qual rapidamente se vazaram os últimos vestígios do Centro Histórico; as plataformas da Praça do Município e do Campo da Vinha abateram ao longo de uma falha, formando uma depressão tectónica que em breves segundos se transformou num formidável pantanal; por todo o concelho, os prédios estalavam e ruíam como castelos de cartas, enquanto o presidente da câmara e os principais empreiteiros da região - desde os primeiros sinais da catástrofe refugiados no abrigo nuclear de Lamaçães - teimavam em garantir às rádios locais a excepcional qualidade das construções existentes, afiançando que nem o mais clandestino dos edifícios do concelho desabaria.

As maiores tragédias estavam ainda, porém, para acontecer. Abatidos ou afundados na lama os respectivos alicerces, as plataformas aéreas de Braga 2 e Braga 3 desabaram ruidosamente sobre as cabeças dos bracarenses em fuga, que nem tempo tiveram para dizer... é bom viver em Braga. O número de vítimas engrossava a cada segundo. Quase simultaneamente, começavam a chegar notícias de que o mar avançava vertiginosamente sobre Braga, submergindo os concelhos limítrofes. O pânico instalou-se no espírito dos últimos sobreviventes, que já se imaginavam a fazer companhia aos peixinhos.

Ficou célebre, nesta altura, o desabafo premonitório do presidente da câmara, que em entrevista à Antena Minho teve este comentário lapidar, bem revelador da verdadeira paixão que nutria pelo património cultural: "eu sempre estive convencido que acabaria os meus dias a lotear o subsolo ou a fazer arqueologia subaquática; vou ter agora a oportunidade de refazer utilmente a minha vida - partindo à caça de outros tesouros. Como escreveu Camões, nos Lusíadas, há mar e mar, há ir e voltar"...

In extremis, porém, Braga salvou-se de ser engolida pelas ondas do Atlântico. A plataforma do concelho, entretanto liberta dos cordões geológicos que a prendiam ao continente, manteve-se à tona das águas, ficando a flutuar ao largo do novo mar de Amares.

Não cabe, naturalmente, nos estreitos limites desta evocação o relato de todas as transformações por que passou Braga depois dos infaustos acontecimentos que aqui recordámos.
Transformado em ilha, mas sob o comando sempre iluminado do PAI (Primeiro Autarca dos Indígenas), o concelho de Braga conheceu um novo surto de progresso. É sabido que sobre a antiga cidade se formou um gigantesco cone vulcânico, do qual resultou a grande cratera que deu origem ao que é hoje a lagoa da Cividade - um dos ex-libris da nova região autónoma. Bracara Augusta deixou, é certo, de existir - mas Braga, com uma nova designação, sobreviveu.

A nova região precisava de uma sede. Impunha-se encontrar para ela a melhor localização, de preferência junto ao mar e com abundância de terrenos disponíveis para construção. Os urbanistas municipais não tardaram a apontar a solução ideal.

Pelo desfiladeiro de Fraião, começara a correr um novo rio que desaguava no oceano na antiga freguesia de Guisande, formando um imenso delta em que cujos braços se depositavam todos os lixos e entulhos da região. Esta circunstância infeliz valeu-lhe mesmo, de resto, a designação de Rio Peste. Entenderam os urbanistas municipais que os terrenos atravessados pelo delta do Peste reuniam as condições naturais para abrigarem um grande porto de mar (cimenteiro) - que serviria de sede à nova região. E assim foi dado início à construção daquela que é hoje uma das mais promissoras cidades do país, Braguisande, assim baptizada em homenagem à antiga freguesia que acolheu a herdeira de Bracara Augusta. 
O tempo há-de comprovar que a escolha foi a mais sábia.

" Implantada em terrenos de aluvião, jamais Braguisande correrá o risco de se afundar numa nova catástrofe".
Disse-o o presidente da câmara e nós, piedosamente, acreditamos...

No Expresso de 9 de Abril de 2004 foi transcrita, para que todo o país dela tivesse conhecimento, uma notícia inicialmente publicada no "Diário do Minho" e que dizia: em plena área urbana de Braga, sobre o antigo leito do Rio Este, um edifício licenciado pela Câmara há menos de 4 anos está a afundar-se... O auto [da vistoria] da Câmara reconhece a "situação preocupante"... A oposição do PSD insiste em responsabilizar politicamente a autarquia, por ter autorizado a construção sobre o leito de cheia do curso de água que atravessa a cidade…

Este acontecimento, aliás de há muito esperado, fez-nos recordar um desdobrável profusamente distribuído vai para 10 anos pela Associação Cívica Arco-Íris, intitulado "Braguisande: Braga depois do desastre", que além de elucidativos mapas, apresentava um premonitório texto que aqui gostosamente recuperamos, recordando que é (é?) pura ficção científica...

O mesmo certamente não pensarão os moradores do prédio de Lomar.

HBN