[Publicado do "Diário do Minho" de 2004.03.22]

 

O beneditino bracarense - Fr. Cipriano da Cruz - Escultor e Arquitecto
Aurélio de Oliveira

Em 1968 publicava Robert Smith uma obra sobre Fr. Cipriano da Cruz - o monge artista beneditino e figura cimeira da escultura e da imaginária do barroco nortenho e nacional do período charneira que cobre os fins do século XVII e princípios do século XVIII (circa 1715) 
Sobre o conjunto notável das suas obras de escultura, produção e sua importância histórico-estilística, pouco mais se poderá acrescentar, embora do elenco conhecido não conste a totalidade da obra efectivamente produzida. Na verdade, para além de obras para as Casas de Tibães, Coimbra, S. Tirso e Carvoeiro, terá realizado ainda esculturas e imagens para outros mosteiros e seguramente para outros clientes de fora da Ordem que, entretanto, não tem sido possível atribuir-lhe por falta de documentação expressa. (A recente exposição iconográfica e documental de Coimbra nada mais acrescenta).


Todavia, damos hoje a divulgação e conhecimento de uma outra dimensão do artista beneditino e, na verdade, bracarense pois nesta cidade nasceu, possivelmente por 1653-1655. Em Braga exerceu o ofício de ensamblador até à sua entrada para o grémio beneditino no Mosteiro de Tibães em Maio em 1676, quando era já nomeado imaginário e escultor na cidade dos Arcebispos. Com a consagração feita na arte da escultura, aqui em Tibães viria a acabar os seus dias em 1716 e neste Mosteiro ficaria sepultado. 

Na altura em que vamos divulgando alguns documentos sobre o barroco beneditino e bracarense, na verdade recolhidos desde a altura em que tivemos que preparar os nossos trabalhos de licenciatura e doutoramento (1969/70 e 1979 - que nos obrigariam a percorrer todo o fundo documental desta e de outras casas), damos aqui pública notícia sobre uma outra dimensão artística de Fr. Cipriano da Cruz. Essa dimensão até agora totalmente desconhecida, do notável escultor beneditino e bracarense, diz respeito à autoria de riscos e planos para obras de arquitectura executadas aqui na cidade nos inícios do século XVIII.

Terá sido uma faceta pouco importante relativamente à obra de escultor e imaginário, tantas foram as obras de mérito deixadas neste campo. E terá sido, sobretudo, um complemento final, possivelmente muito marginal, da sua vida de artista. O documento que o comprova data precisamente dessa fase final da sua vida, sem excluirmos de todo que possa ter realizado outros nos tempos anteriores. 
Esta última actividade, até agora desconhecida, realiza-se durante o primeiro generalato de Fr. Pedro da Ascensão entre 1704 e 1707. Triénio, aliás, de realização de muitas obras na Abadia e onde Fr. Cipriano estava colocando muitas da sua produção desde tempos anteriores.
Data deste triénio também a ultimação da obra "moderna" feita na Hospedaria de Braga - Casa dos monges de S. Bento e pousada habitual para os seus padres Procuradores (tanto da Abadia como da Ordem em geral) que vários negócios, desde os eclesiásticos, aos cíveis e económicos, traziam constantemente à Corte Bracarense. 

As obras nesta casa haviam sido iniciadas com o Geral, Fr. Silvestre da Santíssima Trindade (1698-1701), e depois continuadas por Fr. José de S. Boaventura (1701-1704). Caberia a Fr. Pedro da Ascensão a ultimação das mesmas nomeadamente "mandando fazer a capela e a magnífica sala com o nobre forro que tem e, para os Procuradores gerais, hum quarto capas e grande". "Mandou-lhe ainda fazer a escada nobre e se compuseram três celas, acabando-se neste triénio o resto do lanço do claustro começado com o seu antecessor, completando todo o conjunto de obra que restava neste edifício". Este Hospício e pousada passou a ser, assim, uma das nobres construções, não desmerecendo, esta casa dos bentos, da renovação arquitectónica e monumental que D. Rodrigo de Moura Teles estava também iniciando na cidade.

Para a ultimação desta fase final das obras de pedraria lavrar-se-ia contrato como Manuel Nogueira, natural de S. Salvador de Moreira de Maia - um alfobre de mestres pedreiros que Braga estava atraindo de modo muito particular. 
Este mestre pedreiro também distinguido depois como arquitecto, viria a realizar várias obras em Braga, mas a primeira de grande responsabilidade seria a deste hospício dos Padres Bentos. (Em 1703 arrematara parte da abóbada da Igreja dos Terceiros mas de parceria com André Ferreira. Só depois destas obras para a Ordem de S. Bento é que se viria a envolver-se com outra dimensão na Igreja dos Terceiros e noutras casas particulares da cidade). 
Por este contrato, ficamos sabendo que a planta apresentada para a ultimação das obras a executar por Mestre Manuel Nogueira estava assinada por Fr. Cipriano da Cruz. Indicação de que as traças de arquitectura da Casa haviam sido da responsabilidade do Monge escultor, como vemos, a executar agora trabalhos e desenhos de arquitectura.

Não pretendemos, a partir de tão parcas mas seguras referências, entrar em mais ilações. Mas sabemos - e já para isso chamamos a atenção - que algumas figuras de Monges beneditinos se afirmariam como riscadores de obras de arquitectura, para várias casas da Ordem, tanto em Portugal como em terras do Brasil, quando por ali foram erguendo os vários Mosteiros e Residências ou, até, as construções para os seus engenhos de açúcar.

Obras de responsabilidade, mas mais frequentemente muitas obras menores realizadas ao longo dos tempos pelas diferentes casas. Omitindo-se, pelo genérico, o nome de autoria das traças quando se arrematava a execução dessas obras, poderá isso querer dizer - neste caso concreto - que a autoria dos riscos seria, na maior parte das vezes, caseira. Em alguns casos, alguns Gerais assumiram directamente essa responsabilidade, noutros recorrendo aos "peritos" adentro do seu grémio. Às vezes pequenas obras de adaptação ou reformulação de espaços, seja no interior seja no exterior das suas casas - cujas necessidades conheciam como ninguém - aconselhariam, na verdade, e mais frequentemente o recurso à massa cinzenta e aos "expertos" que tinham, com qualidade, dentro de portas.

E neste período de grande renovação arquitectónico-ornamental e de várias obras em curso em Tibães, pode muito bem ser que a partir desta tão breve referência a "Fr. Cipriano arquitecto", se possa aceitar que tenha assumido a responsabilidade de outros "riscos" de obras de arquitectura (ou até de talha) sobretudo para esta casa - como a seu tempo veremos.




Associado n.º 79 da ASPA
Professor na Faculdade de Letras do Porto

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Fontes/Bibliografia:
Ascensão - Fr. Marciliano da, Coronica de Tibaens Ms. Arquivo do Mosteiro de Singeverga; Estados de Tibães - Arquivo Distrital de Braga. CSB. E. (EE. 1698-1710. Passim); Oliveira, Aurélio de - Colecção (breve) de notícias do Brasil. Braga. 2000; idem - Elementos para a História do Barroco no Noroeste Português. Porto. Faculdade de Letras.1973; idem - Documentos e Memórias para a História do Barroco Bracarense. Bracara Augusta. 2002. doc. 49. (No Prelo); Rocha, Manuel Joaquim Moreira da - Arquitectura Civil e Religiosa em Braga. Braga. 1994; Smith, Robert C. - Frei Cipriano da Cruz Escultor de Tibães. Liv. Civilização. Porto. 1968.

Ricardo Janeiro

O antigo Hospício dos Beneditinos de Tibães - CLIQUE PARA AUMENTAR
Que diria Frei Cipriano da Cruz se visse o que fizeram ao antigo Hospício dos Beneditinos de Tibães?