[Publicado do "Diário do Minho" de 2003.11.17]

 Parte I - ["DM" 2003.11.03]

Ruínas de Bracara Augusta: A visibilidade de um Património Urbano (2ª parte)
Francisco Sande Lemos

3. Património imóvel: o destino das ruínas
Outro problema é o destino dos testemunhos materiais da urbe, as suas ruínas. Como se sabe o valor dos terrenos onde jazem os vestígios é muito elevado, já que Braga é uma cidade em pleno crescimento. Assim, neste domínio específico, tem sido adoptadas diferentes soluções.Há um conjunto de locais e áreas que já estão ou vão ser musealizadas a curto prazo:
- as ruínas da domus do Seminário de Santiago;
- o excelente mosaico descoberto durante as obras do Museu de D. Diogo de Sousa, provavelmente um dos mais antigos do Norte de Portugal;
- a Fonte do Ídolo, onde está a ser erguida uma estrutura de acolhimento e protecção, sob a responsabilidade da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais;
- o balneário romano e restantes ruínas da área vedada do Alto da Cividade, onde está a ser construída uma estrutura de acolhimento;
- os vestígios da insula encontrada sob o edifício da Escola da Sé;
- o balneário pré-romano descoberto durante as obras da nova Estação de caminhos-de-ferro de Braga.

Esperamos que todos estes sítios estejam visitáveis em 2005. Para além destes locais existem ruínas integrados em edifícios reconstruídos:
- a cloaca do cardo máximo norte e os embasamentos do pórtico que ladeava a rua romana, ruínas inseridas no edifício da Bibliopólis;
- restos de uma domus, observáveis sob o pavimento em vidro de uma pastelaria tradicional de Braga, as Frigideiras do Cantinho;
- um troço de muralha do Baixo Império na base da Torre da Capela de Nossa Senhora da Glória;
- os vestígios do mercado romano e basílica paleo-cristã, observáveis numa cripta, sob a capela da Catedral.

Está prevista a valorização, a médio prazo, de outros conjuntos de ruínas:
- insula das Carvalheiras (terrenos municipais);
- tramo da muralha romana da Quinta do Fujacal (terreno privado);
- edifício romano de Santo António das Travessas (prédio municipal);
- insula situada nos terrenos do Museu de D. Diogo de Sousa, no quadrante noroeste (terrenos do Estado).

Contudo, tendo em conta os múltiplos problemas que suscita a conservação a céu aberto, ou em espaços de uso comum, bem como o escasso apoio ao projecto, uma das opções dos responsáveis do salvamento de Bracara Augusta, tem sido a de manter as ruínas sob as novas edificações. Podemos citar três exemplos, entre vários.

No logradouro da Cerca do Seminário de Santiago a Arquidiocese pretendia abrir um parque subterrâneo. De acordo com as sondagens efectuadas verificou-se que se conservavam, a uma profundidade de cerca de metro e meio, os restos de duas insulae do Baixo Império, separadas por uma rua romana, porticada. A viabilidade de um parque subterrâneo colocava grandes dificuldades, mas foi autorizado um parque automóvel com um único piso, assente num ensoleiramento que, deste modo, sela uma vasta área com ruínas romanas.

Noutro ponto da cidade, num prédio da Rua Gualdim Pais, foi registado um tramo da muralha do Baixo Império, estrutura que manteve a sua funcionalidade no período suévico-visigótica. O espaço interno à muralha ficou sob os alicerces, enquanto que a muralha se conserva enterrada no logradouro.

Recentemente, o proprietário de um terreno anexo à insula das Carvalheiras decidiu usar um antigo parecer favorável do IPPC para construir. Na parte superior do terreno, onde o sub-estrato rochoso é mais elevado, as ruínas romanas foram muito afectadas pela edificação do matadouro da cidade, no século XIX. Pelo contrário, na parte inferior, os muros encontram-se bem conservados, com paredes de quase um metro de altura. Neste caso foi adoptada uma solução intermédia. No tabuleiro superior os escassos vestígios romanos foram escavados, registados e desmontados, ficando assim definido em planta, o prolongamento para oeste da rua romana da insula das Carvalheiras e das tabernae adjacentes, a sul. No tabuleiro inferior, a intervenção arqueológica limitou-se ao desenho das cristas dos muros. Nesta área as ruínas ficam seladas, sob um ensoleiramento contínuo que servirá de alicerce ao prédio e garagens.

Na Rua de S. Geraldo, conservam-se, sob o piso térreo de vários prédios reconstruídos, ruínas romanas. Como é óbvio estas áreas, seladas por betão, ficam vedadas a trabalhos arqueológicos nas próximas décadas, embora salvaguardadas.

Outra maneira de proteger os vestígios foi o aterro de diversas zonas e a sua afectação a zonas verdes e de equipamento leve. Enquadram-se, neste âmbito, três superfícies, situadas no quadrante sudoeste da cidade. Uma delas ficou, exclusivamente, como espaço relvado, tendo sido escolhida como o local mais adequado para um monumento a Bracara Augusta, da autoria de Pedro Cabrita Reis, iniciativa da Câmara Municipal de Braga. Noutra foi instalado um parque radical que é bastante utilizado pelos adolescentes dos bairros mais próximos. Finalmente, numa terceira área, foi erguido, em materiais leves, um café com esplanada.

Nos jardins do Museu de D. Diogo de Sousa conservam-se numerosos vestígios arqueológicos. Paralelamente, o arranjo de diversos largos do Centro Histórico tem sido devidamente acompanhado. Num deles, no Largo de S. Paulo, próximo do Forum, as estruturas da urbe romana encontravam-se logo abaixo do antigo empedrado. Considerando que a escavação completa da praça implicava muitos meses de trabalho, a intervenção arqueológica limitou-se ao desenho do topo das ruínas. O reticulado dos muros ficou marcado no novo pavimento do Largo de S. Paulo, que recobriu os vestígios e os sedimentos associados. Noutros largos de Braga as estruturas romanas jazem a maior profundidade, pelo que não há necessidade de intervenções do mesmo tipo, e porque as cotas do pavimento das praças não foram alteradas. Constituem, pois estes espaços significativas reservas para futuros estudos.

No Centro Histórico, os projectos de renovação dos imóveis, caso esteja prevista cave, incluem, obrigatoriamente, escavações arqueológicas prévias. Se o subsolo é pouco afectado, a obra fica condicionada a um acompanhamento que pode evoluir para trabalhos arqueológicos de maior envergadura. Esta política, adoptada pela Câmara, embora nos suscite algumas reservas, tem um efeito dissuasor positivo. Ponderando os custos das escavações e com receio de eventuais descobertas relevantes, muitos proprietários abandonam a ideia da cave. A generalidade dos alicerces, dada a pouca altura dos prédios, fica acima das camadas arqueológicas, que assim ficam seladas para futuras intervenções.

O método, adoptado em Londres durante décadas, de escavações extensivas e desmontagem, ou desmantelamento, das ruínas também é aplicado em Braga. Sempre que as ruínas não formem um conjunto coerente, sejam de amplitude reduzida, ou de escasso valor patrimonial, a desmontagem é autorizada. Os resultados científicos podem ser interessantes, mas fica sempre uma sensação amarga. Podem também ocorrer sub- avaliações, na fase das sondagens prévias. Um exemplo disso foi o conjunto desmontado no logradouro da antiga Casa de Penhores, na Rua Afonso Henriques. De facto, só à posteriori, se obteve uma imagem efectiva do valor patrimonial e científico do espaço sacrificado. Em Braga, verificámos, pois, que os indicadores das sondagens prévias não são suficientes, subestimando-se, com alguma frequência, o valor arqueológico do terreno.

4. Considerações finais
Como é normal, e conforme já salientámos, numa cidade que se reconstruiu, ao longo dos séculos, com pedra romana, faltam em Bracara Augusta conjuntos monumentais. Por outras palavras não é uma cidade morta, congelada no tempo, como algumas urbes romanas do Norte de África e da Hispania. Todavia o conhecimento já acumulado permite viajar na cidade, mergulhar na sua história. Para tal devem ser adoptadas, em simultâneo, as seguintes medidas:
- fixar um prazo irrevogável ("deadline") para a abertura do Museu de D. Diogo de Sousa;
- dinamizar os programas de valorização em curso, imprimindo um ritmo mais veloz ao interessante conjunto da Escola da Sé, onde se pode observar parte de uma insula romana com mosaicos, um tramo da muralha medieval e o excelente pano do torreão fernandino;
- concretizar projectos de valorização que tardam: caso da insula das Carvalheiras;
- organizar um itinerário de visita à cidade, em cujo âmbito serão integrados todos os locais, mesmo os que não são observam directamente as ruínas, mas que constituem pontos chaves para a história do urbanismo;
- retomar a ideia de Arcebispo D. Diogo de Sousa, expondo nos lugares apropriados os originais, ou réplicas, de elementos arqueológicos que balizam a cidade romana: o miliário 0 (zero) da saída para Cale no extremo sul da Rua de S. Geraldo; o miliário 0 (zero) da via Bracara a Lucus no extremo da Rua de S. Sebastião; o miliário 0 (zero) da Via Nova no Largo de S. João do Souto; a ara aos deuses viários no Largo de S. Francisco;
- valorizar, com sinalização e placas explicativas, inscrições de grande interesse como a de Isis, ou a de Augusto, que se encontram nas paredes da Sé e que passam despercebidas aos visitantes e aos turistas;
- sinalizar o local das antigas portas romanas e medievais, mesmo a que já desapareceram;
- inserir em determinados espaços públicos memórias da cidade romana; por exemplo reservar um espaço no Teatro Circo para a divulgação das necrópoles;
- colocar nas praças e ruas do Centro Histórico placas interpretativas que possam ilustrar de forma sumária a história de cada uma;
- recorrer às novas tecnologias de informação, designadamente às reconstruções virtuais, ampliando a rede de quiosques multimédia já disponíveis.

Para este programa existe toda a informação científica necessária e a boa vontade da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho e de outros especialistas. Pretendemos que os bracarenses, os visitantes da cidade, os alunos das escolas possam apreciar as peças que saíram das escavações, observar as ruínas, saber como evoluiu a cidade.

O futuro de Braga não se limita à construção civil, às grandes superfícies e ao futebol, embora estes também sejam elementos importantes da economia da cidade. Numa estratégia de aproveitamento de todos os recursos e mais valias é indispensável valorizar o conhecimento disponível sobre o passado de Braga e suas materialidades, oferecer um produto turístico que capte, informe e mantenha os visitantes. Ou seja aumentar o grau de competitividade da urbe. A valorização do Seminário de Santiago e da Torre homónima, iniciativas da Arquidiocese são exemplos que se deviam multiplicar.

Braga, Julho de 2003




Associado n.º 31 da ASPA

Ver 1ª parte do artigo:
Parte I - ["DM" 2003.11.03]