[Publicado do "Diário do Minho" de 2003.11.03]

 Parte II - ["DM" 2003.11.17]

Ruínas de Bracara Augusta: A visibilidade de um Património Urbano (1ª parte)
Francisco Sande Lemos

1. Introdução
Num texto publicado no número 8 da revista Al-Madan, Amílcar Guerra teceu diversas considerações sobre os problemas do estudo arqueológico das cidades portuguesas. De facto, por motivos que todos conhecem, não há uma política nacional no âmbito da Arqueologia Urbana. No futuro os responsáveis políticos (do Governo Central e das Autarquias), as direcções e funcionários superiores dos Institutos Públicos do Ministério da Cultura, os arquitectos e, mesmo, os próprios arqueólogos, hão de ser severamente julgados por esta negligência. A extraordinária riqueza arqueológica do subsolo das nossas cidades continua a ser delapidada a um ritmo alucinante, por vezes sem o mínimo registo fidedigno.

No seu artigo, a propósito da Fonte do Ídolo, Amílcar Guerra refere-se às "materialidades de Bracara Augusta", expressão que nos inspirou para redigir este texto. Iniciado em 1976, o salvamento da antiga capital da Gallaecia já alcançou, no âmbito científico, o desejável patamar do reconhecimento internacional. Efectivamente, dispomos hoje de um sólido conjunto de conhecimentos sobre a história da urbe, com base nos dados arqueológicos, embora sejam ainda muitas as questões em aberto, como é normal em qualquer projecto. Graças ao saber acumulado, mesmo os resultados de uma pequena sondagem são facilmente valorizados pela sua imediata inserção no quadro mais vasto da história urbanística da cidade romana.

Porém, se a vertente científica do salvamento de Bracara Augusta, possui uma dinâmica própria, já o destino das ruínas, das "materialidades" é um assunto difícil. De facto, apesar da sua importância e dimensão na antiguidade, Braga não é uma cidade com monumentos romanos espectaculares, como Tarragona ou Mérida, embora o seu subsolo seja muito rico em vestígios. Restauros integrais, ou parcelares de ruínas, como o que se efectuou em Conímbriga nos anos 30 e 40, são cada vez mais contestados. Torna-se, pois, necessário encontrar políticas adequadas, seja para garantir a salvaguarda da informação existente no subsolo, seja para divulgar os conhecimentos adquiridos, valorizando as estruturas descobertas. 

2. A política inicial
Quando o projecto de estudo de Bracara Augusta começou, em 1976, o objectivo expresso dos seus primeiros responsáveis (Francisco Sande Lemos e Manuela Delgado) era o de restringir as intervenções ao mínimo indispensável, a fim de evitar os problemas resultantes da Arqueologia de Salvamento, já muito discutidos nessa época: sucessivos trabalhos de campo e aumento exponencial de dados por examinar, armazenados nos arquivos e depósitos das entidades públicas. Com esse intuito foi proposta ao Ministério da Cultura uma vasta reserva de terrenos intocáveis.

A ampla reserva projectada nunca se concretizou, ora por dificuldades levantadas pelo Município, ora devido à inércia, ou má vontade, da Administração Central. De qualquer modo, o facto da sede do Serviço Regional de Arqueologia do Norte (IPPC) estar em Braga, durante a década de 80, inviabilizou grande parte das constantes pressões imobiliárias.

Nos finais dos anos 80, e no início da década seguinte, houve movimentações no sentido de se estabelecer uma política diferente. Pretendia-se facilitar a construção em troca de verbas para trabalhos arqueológicos prévios, à semelhança (embora pindérica) dos procedimentos vigentes em Londres. A violenta reacção da Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, bem como a subsequente polémica, evitaram este novo caminho. Perante a cidade ficou claro que a Universidade não abdicava de defender Bracara Augusta e de orientar os estudos, política que contou com o apoio expresso da Reitoria e de diversos sectores da opinião pública de Braga.

Na sequência deste conflito a gestão das materialidades da urbe romana, do património arqueológico da cidade de Braga entrou numa nova fase, mais complexa. A Câmara Municipal de Braga, criou um Gabinete de Arqueologia, mantendo-se todavia, uma direcção científica única, supra - institucional. A Unidade de Arqueologia, admitindo que a ideia de delimitar uma vasta reserva era utópica, optou por uma política mais flexível, ponderando, cuidadosamente, cada parecer. Esta nova atitude, mais casuística, transformou o salvamento de Bracara Augusta num laboratório de ensaio, em que têm sido experimentados diferentes procedimentos no âmbito da gestão do património arqueológico urbano. O elevado número de acompanhamentos, sondagens e escavações efectuados desde 1976 e que já ultrapassa uma centena, permite tipificar os procedimentos, avaliando a sua eficácia.

3. Património arqueológico móvel
Quanto ao material recolhido nos acompanhamentos, sondagens e escavações o seu destino habitual, de acordo com a lei, é o Museu de D. Diogo de Sousa. A única entidade que não cumpriu este normativo foi a Delegação Regional do Norte do IPPAR que, até esta data, nunca entregou os materiais recolhidos nas escavações da Casa da Roda e no logradouro da antiga fábrica Cardoso da Saudade (Largo de S. Paulo). Assim o museu de D. Diogo de Sousa possui um dos melhores acervos arqueológicos do norte do país: cerâmica da Idade do Bronze (na área urbana foram já identificados dois pequenos povoados); cerâmica da Idade do Ferro, proveniente de diversos povoados dos arredores de Braga; um diversificado conjunto de cerâmicas de importação e comuns, de fabrico local; lucernas, incluindo um excelente exemplar em cerâmica vidrada; uma interessante série de vidros importados e de fabrico local; objectos de adorno (alguns em marfim e ouro); diversos objectos em metal, incluindo bronzes figurativos ou utilitários; uma numerosa série de moedas do Alto-Império; quatro tesouros do Baixo-Império, um deles com cerca de 50 000 moedas (descoberto na Insula das Carvalheiras); uma raríssima taça de prata; estatuária pré-romana; epigrafia votiva e funerária; uma excelente colecção de miliários (que tem a vantagem de representar quase todas as principais dinastias); elementos de arquitectura dos mais variados tipos: bases de coluna; fustes; capitéis; lintéis, etc.

Tanto em Lugo, como em Astorga já foram organizados exposições com os materiais recolhidos; as colecções de Braga são melhores e mais extensas. Infelizmente, todo este material continua inacessível aos olhos dos bracarenses e do público português. As obras do Museu, principiadas em 1991 sofreram diversas interrupções. Actualmente, encontra-se na fase dos arranjos exteriores e finais. No próximo ano, irá começar a montagem da exposição, caso, mais uma vez, não se levantem obscuros interesses que determinem novo compasso de espera. Os atrasos na obra e na montagem da exposição permanente do Museu de D. Diogo de Sousa, são tanto mais graves, quanto o grau de conhecimentos científicos sobre Bracara Augusta, já assegura os suportes necessários para a captação do mais variados públicos.

Lamentamos, aliás que o Museu não seja aberto a público em 2004, quando se realiza o Campeonato Europeu de Futebol. Não se entende porque motivo o público de Lisboa já pôde observar peças (emprestadas pelo Museu de D. Diogo de Sousa ao Museu Nacional de Arqueologia), que os bracarenses não podem ver. Será que um dia vai acontecer aos materiais de Bracara Augusta o mesmo destino que as colecções do Museu do Algarve, reunidas por Estácio da Veiga, na segunda metade do século XIX e que foram integradas no Museu de Belém, em Lisboa? Agora, bem protestam, sem sucesso, os algarvios.

Sem o museu a visibilidade de Bracara Augusta é muito menor e fragmentada. Talvez por este motivo os adversários do estudo e valorização da cidade romana, espalhados por Braga, Porto e Lisboa, considerem o Museu como um elefante branco.




Associado n.º 31 da ASPA

(continua)
Parte II - ["DM" 2003.11.17]