[Publicado do "Diário do Minho" de 2003.10.06]

 

Dois casos concretos da rua do Souto, em Braga
Armando Malheiro da Silva

Numa breve, mas estimulante coluna semanal publicada no Expresso (Suplemento Imobiliário), do dia 6 de Setembro, João Barreiros chama a atenção para as vantagens de conservar o património, abrindo com estas palavras: Nesta edição revelamos o trabalho de diversas autarquias que pretendem preservar o património existente nos seus concelhos. Durante as recentes férias, tive o privilégio de verificar o que — a este respeito — se está a fazer no centro da Europa. Praga, Viena, Salzburgo, Munique foram cidades onde pude constatar a importância económica de uma preservação que dura, não há anos, mas há séculos. E prossegue: Numa altura em que Portugal aspira a entrar no grupo dos dez países com maior entrada de turistas em todo o mundo, cabe fazer notar a relevância que deve ter a preservação do que há de bom nas nossas cidades. Por isso, é de enaltecer o esforço dos autarcas, actores essenciais para que este processo se desenvolva. A eles, como aos munícipes em geral, cabe-lhes velar para que não se perca de um dia para o outro um património valioso e por vezes irrecuperável. 

Palavras de alerta e de estímulo que subscrevemos sem dificuldade, mesmo sabendo por experiência própria que há ainda muitos autarcas incapazes de perceber que a valorização do património não significa “lavar a cara” a uns quantos monumentos ou criar oficialmente centros históricos. Isto não basta, permanecendo infrene o vandalismo nas suas múltiplas formas ou a intervenção inconsequente de quem não sabe, afinal, (re)conciliar o passado com o presente e o futuro.

A preservação do património passa por desenvolver e fixar uma concepção teórica consistente sobre o conceito e suas práticas, bem como pela consciência da necessidade de uma estratégia de longo prazo, assumidamente económica (atenta à rentabilização directa e, sobretudo, indirecta, dos custos e investimentos que são obviamente avultados), mas nunca economicista, porquanto o ismo em qualquer disciplina ou doutrina implica redução, visão restrita e segmentada.

A questão teórica, àcerca da noção de Património, manter-se-á sempre pertinente e incontornável. 
Perceber, como frisou no seu estilo claro e elegante José Augusto Franca, que o conceito de Património é um conceito que, por ser histórico, remete para um conceito de História, implica a inferência seguinte: E porque a natureza e a obra dos homens é historiável, o património, construído ou documentado de outro modo, desde os arquivos aos quadros de pintura mas muito particularmente a construção de pedra e cal, tem de ser inserido nesse conteúdo do sentido e do conceito de História. E ele fica, assim, preso ao olhar indagativo dos historiadores que, impulsionados e vocacionados para compreenderem e reconstituírem o passado, têm de cumprir sua tarefa através da recolha critica e análise apurada dos “restos” (os vestígios patrimoniais) como ensinou Paul Valéry: os historiadores trabalham sempre sobre “os restos” sobre aquilo que ficou das civilizações passadas. Cada dia traz uma carga enorme de informação que no dia seguinte está, em alguma percentagem, esquecida, daí a cem anos muito mais, daí a séculos apenas restos dela nos ficam — restos arqueológicos em certas situações, restos documentais que a todo o momento se escavam em canteiros de obras ou se encontram em bibliotecas. Restos que nasceram num tempo e num espaço, possuindo o sentido que esse contexto lhes conferiu, e que com o passar dos anos e dos séculos, e com o apagamento suave ou brusco do envolvimento espacial se descontextualizam, ou seja, ficam objectos coleccionáveis num espaço artificial — o Museu — mas distantes ou separados do seu habitat original.

Esta ideia é fecunda e geradora de controvérsia e levar-nos-ia por outros caminhos que não cabe aqui percorrer. Interessa-nos no imediato um atalho curto que permita ligar a ideia expressa à viabilização económica do Património, desses “restos” musealizados ou “ao vivo”, mantidos no seu espaço e acumulando tempo (a patine dos anos e dos séculos) ou adaptando-se às sucessivas exigências estruturais e conjunturais do Tempo histórico através, por exemplo, de mudanças na função/uso de um imóvel inteiro ou apenas de alguns espaços nesse imóvel.

Preservar imóveis antigos, com maior ou menor valor estético e arquitectónico, enfrenta, na era em que vivemos, a equação do problema económico, que o mesmo é dizer: traz à colação o binómio clássico custo-benefício. E exige ainda imaginação e forte contenção na ânsia natural do lucro imediato e abundante, porque preservar dentro de uma concepção “purista” (sem concessões a modernismos nas formas e nos materiais de construção) sai muito caro e o retomo difícil ou incerto. No entanto, como viu e anotou João Barreiros, por essa Europa acima, já não assusta, nem provoca hesitações graves a linha preservacionista porque o turismo e as actividades económicas a ele associadas compensarão positivamente o esforço e, sobretudo, o cuidado por manter vivo um Passado visto como boa opção de Futuro.

Poderá, então, perguntar-se se esta perspectiva é contemplado no modelo de crescimento básico e cego que predomina a prática urbanística em Portugal? A resposta salta à vista: NÃO. E em Braga a negativa é mais rotunda. E é grave e é pena, porque havendo já formalmente consagrado um Centro Histórico, com Gabinete de Arqueologia, e uma natural apetência para o aumento crescente de turistas contagiados e contagiantes do interesse multiplicador de mais e mais gente visitar a cidade, a Câmara Municipal, através do seu Presidente e suas sucessivas equipas, continua, ao cabo destes últimos vinte e cinco anos, a abster-se de um papel regulador que obrigue os privados a respeitarem o Bem Comum. Ora, a defesa do Património insere-se obrigatoriamente nesse conceito cívico fundamental.

Para rematarmos estas notas, pretendemos ilustrar o exposto com dois casos exemplares de como devemos entender, hoje, o Património histórico-cultural e como pode ser viabilizado numa óptica ecológica e de futuro.

Dois casos situados no quarteirão da Rua do Souto entre o Largo do Paço e o cruzamento com a Rua Justino Cruz. E ambos do mesmo lado, ou seja, do lado direito de quem desce a Rua do Souto em direcção ao dito Largo ou ao Arco da Porta Nova. Este quarteirão, delimitado a norte pelo emblemático Jardim de Santa Bárbara, está, de há uns anos a esta parte, na mira de interesses imobiliários que pretendem “valorizar” o local, sacrificando o miolo, poupando algumas fachadas (solução pífia que atingiu no caso do Palácio Matos Graça da Senhora-a-Branca, o flagrante absurdo), e atraindo mais comércio, serviços e comércio dentro do habitual e errado esquema de desertificação humana dos centros urbanos.

O primeiro caso é o imóvel com rés do chão e dois pisos, ocupado no primeiro pelo Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e aí existe a denominada Sala Egípcia devido aos motivos pintados nas paredes que evocam a era dos Faraós. Uma peça pictórica dos anos 30, rara na cidade, sendo muito difícil encontrar réplicas por este País fora. Há muito que vem sendo solicitada a classificação do imóvel para preservação da Sala. E sendo o edifício antigo, necessitado de benfeitorias, as infiltrações de água, durante o Inverno, estão a provocar a degradação de um trabalho de decoração pictórica de interior que, ao ser preservado, pode ser exibido aos turistas e, eventualmente, cobrada uma taxa de ingresso e de reprodução fotográfica, como se faz nos países que tiram o máximo proveito económico dos bens patrimoniais acessíveis à visita e à fruição pública. A classificação deste espaço há muito anda sendo debatida e urge ser feita, merecendo registo o apoio que tal medida tem recebido das várias Direcções do referido Sindicato, inquilino no dito prédio.

O segundo caso, coloca-nos diante de um edifício de finais de seiscentos. Falamos da Casa de Teodósio de Almeida que aparece estudada no livro de Ana Maria Magalhães de Sousa Pereira intitulado Da Casa Grande da Rua dos Pelames à Casa Nova da Rua de Dom Gualdim. Braga séculos XVII-XVIII (Braga: Edições APPADM, 2000, p. 126-129; p. 292). Sobre o interesse histórico e patrimonial deste imóvel, remetemos para a documentação e as considerações especializadas que a mencionada Autora condensou. Aqui, o nosso enfoque recai na Barbearia do Sr. Matos (Filho) que, só neste findo mês de Agosto, foi visitada por mais de uma centena de turistas que tiram fotos, falam com o Barbeiro e tecem elogiosos comentários ao ambiente e ao mobiliário de finais de oitocentos (ver figura). Houve mesmo quem já propusesse a compra dos espelhos, da bancada, das cadeiras, etc. Estamos perante um caso de Património no seu contexto natural que perde se dali sair e se deixar de ser Barbearia. Alguém tem dúvidas? Assim sendo, não deverá o pelouro da Cultura apoiar um pedido de classificação do imóvel e simultaneamente da preservação da respectiva entrada que aloja há mais de um século a Barbearia? Um Pelouro da Cultura atento e responsável, sintonizado com os pressupostos teóricos e económicos expendidos acima, só pode responder afirmativamente. 

Mas, a Câmara Municipal não se tem pronunciado e não pôs objecções a, pelo menos, um projecto para o quarteirão que foi apresentado e enviado para apreciação ao IPPAR, recebendo parecer muito negativo. E, talvez por isso, o projecto tenha abortado... Mas permanece vivo o desejo de usar e transformar o imóvel para fins comerciais ou de rentabilização imobiliária dentro ou fora de um projecto de transformação global do quarteirão. Em paralelo e na recta final, está a correr um processo judicial de despejo do subarrendatário, ou seja, do Barbeiro.

O interesse imobiliário não desarma perante a passividade cultural da Câmara Municipal que só deve/deveria estar do lado dos que pedem e exigem a classificação imediata da casa de Teodósio de Almeida, a fim de que Braga, no presente e no futuro, possa continuar a mostrar aos turistas aquilo que lhes suscita curiosidade e agrado, ou seja, um pedacinho genuíno de si mesma.




Presidente da ASPA