[Publicado do "Diário do Minho" de 2003.03.24]

A ASPA DIVULGA

O balneário do terminal da C.P. de Braga
António Pereira Dinis*

Há cerca de um mês, a imprensa noticiou o achado de um "balneário pré-romano", junto da estação de caminhos de ferro de Braga ("Balneário achado na velha estação", in Jornal de Notícias, 19/2/2003, p.34). A raridade deste tipo de edifícios e a especificidade do exemplar agora desvendado, tanto ao nível da sua construção como do contexto em que se integra, tomam o achado excepcionalmente importante, razões que nos motivaram a escrever este texto.

A bibliografia arqueológica chama "balneários" ("saunas castrejas", "monumentos com forno" e "construções com pedra formosa" são designações também utilizadas na bibliografia) a um tipo de edifícios de arquitectura complexa e construção cuidada, identificados nos povoados da Idade do Ferro, vulgarmente denominados de "castros". A função destas estruturas, que aparecem parcialmente soterradas na vertente dos povoados e junto de linhas de água, foi alvo de polémica durante muitas décadas, aceitando-se hoje que tais conjuntos estejam ligados a banhos de vapor e água fria (tipo "sauna"), eventualmente relacionados com um qualquer ritual.
Embora a escavação de, alguns deles demonstrasse que a edificação e funcionamento tivesse ocorrido já em período de ocupação romana, tem sido evidenciado, ultimamente, o seu cariz marcadamente indígena, colocando-se a hipótese da existência de modelos arcaicos, talvez construídos em materiais perecíveis.

Devemos a Francisco Martins Sarmento a divulgação, no último quartel do século XIX, da "pedra formosa" de Briteiros - grande estela, profusamente decorada, visitável no Museu da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, que fez parte de um "balneário" (nunca encontrado) -, e a definição da apologia destes complexos, relacionando os exemplares então reconhecidos no Castro de Sabroso (Guimarães), na Citânia do Monte da Saia (Barcelos) e no Castro do Alto das Eiras (Vila Nova de Famalicão). Desde essa altura até hoje foram cartografados no Entre Douro e Minho cerca de uma dezena de "balneários", podendo ainda encontrar-se alguns deles "in situ", constituindo-se como monumentos emblemáticos nas estações arqueológicas onde foram levantados e servindo de oportunos meios didácticos no estudo-aprendizagem das sociedades da Idade do Ferro. Refiram-se, como exemplos melhor conservados e musealizados, o da Citânia de Briteiros, em Guimarães (aparecido intacto na década de 1930, aquando da abertura da estrada), o da Citânia de Sanfins, em Paços de Ferreira (escavado na década de 1970), o de Santa Maria de Galegos, em Barcelos (escavado na década de 1980), e o do Freixo, no Marco de Canaveses, tendo este a particularidade de ser escavado na rocha e ter sido substituído por umas termas romanas.

Embora revelem aspectos construtivos que os particularizam, os edifícios que se distribuem entre as bacias dos rios Minho e Douro apresentam um conceito que os unifica e que se materializa numa organização longitudinal em função de um eixo central com uma planta com posta por quatro espaços, funcionalmente distintos mas complementares, o átrio, a antecâmara, a câmara e o forno.
O átrio é um espaço amplo, que se crê descoberto, lajeado ou empedrado, com tanques e/ou pias para recolherem a água corrente trazida da envolvência por caleiros de pedra ou de cerâmica. Esta organização permitiria o banho frio, uma das práticas presentes nestes complexos.
Pelo átrio acede-se à antecâmara - espaço provido de bancos com temperatura ambiente tépida - e desta passa-se à câmara por uma pequena abertura, semicircular, rasgada na base de um grande monólito, nalguns casos profusamente decorado, apelidado, por essa razão, de "pedra formosa". A câmara, soterrada e com uma área útil reduzida, é uni espaço, de construção extremamente cuidada, coberto por grandes lajes de pedra ajustadas entre si e com os interstícios com argamassa. Um amplo vão liga a câmara ao forno, compartimento de planta sub-circular ou em ferradura, tapado por grandes lajes ou por falsa cúpula, rematada por uma pedra com orifício central para facilitar a combustão e a saída dos fumos. A relação da câmara com o forno mostra que naquele espaço se atingiriam temperaturas elevadas e que a produção de vapor estava facilitada, graças à utilização de seixos incandescentes sobre os quais era lançada água fria.

O "balneário" da estação da C.P. de Braga, embora tenha aparecido já amputado da sua câmara e forno e possua uma "pedra formosa" sem a exuberância decorativa de alguns dos exemplares conhecidos, revela-se um monumento valiosíssimo pelas soluções arquitectónicas e construtivas que apresenta e pela eventual contemporaneidade com a edificação da cidade romana. Estes factos assumem-se de grande significado científico por permitirem afinar a tipologia destes edifícios e pelo contributo que poderão dar ao conhecimento da génese de Bracara Augusta.
A ocorrência deste achado, durante as terraplanagens que aconteciam no local, vem realçar a necessidade de acompanhamento das obras que obrigam a revolvimentos de terras, pois só a permanência do arqueólogo garantirá a salvaguarda dó património que um pouco ao sabor do acaso se vai revelando aos nossos olhos. Infelizmente, nem sempre esta condição é assegurada e por isso, de quando em vez, lamentamos a destruição de bens arqueológicos importantes, tal como aconteceu, há pouco tempo, com um outro "balneário" pré-romano, arrasado no concelho da Póvoa de Lanhoso.
Sabendo-se, desde já, que o "balneário" da estação será musealizado "in situ", resta enaltecer o gesto de todos quantos contribuíram para o salvamento e integração deste monumento na arquitectura projectada para o local, enriquecendo Braga com mais um foco cultural e de atracção turística que muito valorizará a cidade.




* Arqueólogo