[Publicado do "Diário do Minho" de 2003.03.10]

A ASPA DIVULGA

A propósito de "Braga. Cidade de Igrejas" - Álbum de Desenhos de Domingos Araújo
Eduardo Pires de Oliveira

Todos os dias, incessantemente, pacatamente, os monumentos olham para nós.

O dia foge, os ponteiros não param, o autocarro não espera, mas nos parcos minutos de que ainda disponho preciso de comprar o pão e alguma fruta, e, talvez, aquele disco que está na montra e que já há alguns dias ando a namorar.
Paro uns segundos para cumprimentar um amigo, combinar um encontro para tratarmos de um qualquer assunto, criticar o mau estado em que se encontram os passeios, a selva do cimento que nos envolve, as fontes que não param de fazer chover, mesmo nos dias frios de sol aberto do tempo de Inverno.
Mas corro apressado, passo em frente da Arcada, passo em frente dos Congregados - aqui não me esqueço de ter cuidado para que os pombos me não prefiram… - olho sempre em frente, já estou próximo do lugar onde irei comprar o pacote que necessito de envelopes, clipes e marcadores.
Compro, saio, vejo ao longe, à direita, outro amigo a quem aceno, volto pela cangosta da Palha, já está mesmo em cima da hora para o autocarro, será que ainda o vou conseguir apanhar?

Óptimo, consegui, não vou precisar de ficar cá em baixo mais três quartos de hora a olhar para o dia de ontem, a matar tempo em vão.
Esta hora é boa, vai pouca gente, dá para ler mais algumas páginas do romance que tanto me está a interessar, serão quinze minutos passados depressa.
O Diogo, meu vizinho, entra na paragem seguinte. Desta vez viu-me, ajeitou a mochila e veio sentar a meu lado e pergunta-me de imediato:
- Logo à noite posso ir a tua casa?
- Claro que sim. Mas a que devo tão grande honra? pergunto eu a quem se nega sempre a entrar porque, diz-me, "tens livros a mais em casa"!
- É que tenho que fazer um trabalho sobre os monumentos barrocos de Braga e tu podias ajudar-me.
- Está bem, anuo eu. Estás com sorte. Desta vez vai ser fácil, não vai ser como aquele outro trabalho sobre a mitologia grega. Pelo menos os monumentos são algo que se vê, são algo que está sempre presente na rua, não podes deixar de os ver sempre que passas por eles.
Mas a resposta do Diogo, com a sabedoria dos seus 14 anos, deixa-me descorçoado:
- Tu estás a delirar! Eu quando ando na rua não vou a olhar para o ar, vou a conversar com os meus amigos!

Só à noite, num momento de pausa, é que voltei a lembrar-me destas palavras e vi quanto elas me mostravam uma realidade que eu não estava a querer ver.
A arquitectura é a única das artes que não precisa de um espaço próprio, uma galeria, para ser mostrada. Ela está na rua, à nossa inteira disposição, anos e anos a fio.
E são anos e anos a fio que passamos por ela, que a desprezamos, que nem sequer a olhamos de relance, mesmo aos seus espécimes mais sublimes.
A um Amigo temos o cuidado de dizer olá. A uma obra-prima, nem um brevíssimo olhar lhe dedicamos!
Eu que digo que estudo os monumentos, que digo que gosto dos monumentos, que às vezes luto contra malfeitorias que lhes possam querer fazer, eu, dizia, passo ao seu lado sem, na maior parte das vezes, os olhar!!!
E eles estão ali. Não saem dali. Estão a dar beleza à nossa cidade. Estão a dar a alma à nossa cidade. Estão a ser uma fundamental mais valia cultural e económica para a nossa cidade.
Estão ali à chuva, ao vento e ao sol. A servir de base aos pombos que lentamente os vão destruindo, os pombinhos a quem muitos de nós dá pão ou milho. À espera que alguma juventude os desfeie com grafittis. E tempos foram, mas ainda próximos, que até serviram para colar cartazes. De circo, de touradas, de partidos políticos...

Já vai longo, demasiado longo, este texto.
Esta não é uma noite em que a palavra, escrita ou falada, deva merecer a primazia.
Hoje é noite de admirar este acto de recriar o olhar. De fazer um pequeno acto de contrição sobre a nossa relação com os monumentos. De rever o belo que nos recusamos a ver todos os dias. De saborear o belo que aqui nos é dado a admirar.

Obrigado Domingos Martins por nos obrigar a esta reflexão, por nos fazer olhar para dentro de nós e nos obrigar a repensar a nossa relação com os monumentos desta cidade em que vivemos.
Obrigado Domingos Martins pela sua paciência, pela sua vontade de querer partilhar connosco o seu amor pelos nossos monumentos.




Associado n.º 7 da ASPA
[Palavras ditas na apresentação do álbum em epígrafe, promovida pela Biblioteca Pública de Braga em 02.12.10]